domingo, 11 de setembro de 2011



Livro "DEUS NUNCA NOS DEIXA SÓ" LANÇAMENTO SETEMBRO DE 2011 - R$35,00. VISITE O SITE www.barbaraeditora.com.br


Parte 1
Deus fala conosco, muitas vezes, por meio dos sonhos...

1
Teodora sentiu um frio na barriga ao virar à esquerda na quadra seguinte. Chegou a pensar em pôr o pé no breque, dar marcha a ré e voltar, mas algo dentro dela a deteve: o sonho.
O mesmo sonho vinha se repetindo há meses. Depois de muito refletir a respeito dele, chegou à conclusão de que era um aviso do Além, para que ela procurasse as duas mulheres que haviam se tornado tão especiais em sua vida e com as quais perdera o contato. Estariam ainda vivas? Talvez não. Tanta gente parte em trinta e cinco anos. Em breve, ela teria a resposta. Faltava pouco agora para ela chegar ao local onde a vida unira as três.
O lugar se aproximava, o número das casas por onde o carro passava ia em ordem decrescente, como se fosse a contagem regressiva de fim de ano: 8, 7, 6, 5...
“Meu Deus!”, exclamou Teodora, incerta novamente quanto a prosseguir. “É melhor voltar, desistir, enquanto há tempo. Para que remexer no passado?”
Voltar para lá era o mesmo que voltar a um passado do qual ela não fazia questão de se lembrar, mas fizera parte dela.
Seria melhor pisar fundo no acelerador, o quanto antes, e passar reto pelo local. Fora uma tolice querer voltar lá.
Nem bem Teodora tomou a decisão, o sonho voltou a ocupar sua mente de novo. Junto dele veio uma onda de calor, um misto de alegria e tristeza ao mesmo tempo.
“Deixe-me em paz”, suplicou ela, como se o sonho fosse uma entidade. “Deixe-me em paz, desapareça, já, o quanto antes... Já não era fácil viver antes de você aparecer, agora, então... Vamos, por favor, desapareça, deixe-me em paz!”
Teodora estava tão imersa em seus pensamentos que por pouco não atropelou um menino que corria para o meio da rua a fim de apanhar a bola de capotão com que treinava para ser, no seu sonho mais íntimo, um grande jogador de futebol.
Teodora pisou no breque com tanta força que o carro chegou a ranger no asfalto.
O garoto voltou seus olhos vivos, pretos como duas jabuticabas, para a motorista do carro e sorriu para ela, um sorriso tomado de dentes cariados.
Teodora, ainda em pane pelo que poderia ter acontecido à pobre criança, saltou de dentro do carro e foi até ela.
– Você está bem? – perguntou, aflita.
O menino respondeu que sim, com um ligeiro balançar da cabeça, e, num rodopio, saiu chutando a bola com a ligeireza de um craque.
– Desculpe, eu não queria... – tentou explicar Teodora, mas o garoto nem sequer ouviu o que ela dizia, estava tão concentrado na bola que tudo mais lhe era invisível.
Só então, Teodora prestou melhor atenção ao menino. O modo como ele estava vestido revelava sua precária condição social. Estava descalço e trajava apenas um short encardido, surrado e rasgado na altura do bumbum, revelando que ele não fazia uso de cueca.
Tal visão lembrou Teodora do quanto ela odiava a miséria e de tudo o que fizera para escapar dela ao longo da vida.
Quando voltou a si, percebeu-se transpirando fortemente. Limpou a testa com um lenço e voltou para o carro. Quando ela ia entrando no veículo, percebeu que havia parado, sem querer, em frente ao local que procurava, o lugar onde ela vivera toda sua infância e adolescência: o orfanato Santa Clara. Comandado por freiras, abrigava somente meninas, cerca de 170 delas na década de quarenta.
Teodora sentiu um frio percorrer-lhe a espinha. A seguir, uma onda de calor ecoou por todo o seu corpo, provocando-lhe uma alegria envolta de tristeza. Era uma emoção estranha, que não soube definir.
Seus olhos ficaram presos ao portão que dava acesso ao orfanato. Talvez tivesse sido reformado e, por isso, mantinha-se em tão perfeitas condições como no passado. Observando mais atentamente o lugar, tudo o mais por ali parecia o mesmo de trinta e cinco anos atrás. As árvores da calçada, as flores do canteiro aos pés do muro, o próprio muro...
– Meu Deus, até parece que foi ontem... – murmurou Teodora, em meio a um suspiro. – Até parece que foi ontem que atravessei esse portão para nunca mais voltar.
Uma lágrima brilhou entre seus cílios castanhos. E uma leve brisa agitou seus cabelos castanhos e anelados caídos por sobre os ombros.
Sem perceber, Teodora escorou-se contra o carro que alugara assim que chegara à cidade, para ir ao orfanato, e foi se deixando levar pelas lembranças do que vivera desde que seus pais a deixaram no Orfanato Santa Clara, numa noite fria do inverno de 1945. Ela tinha apenas um mês de vida.

2
É lógico que Teodora se lembrava muito pouco do que aconteceu nos seus quatro primeiros anos de vida. Recordava-se dos fatos, a partir do momento em que completara quatro anos de idade. Dela correndo com as demais meninas do orfanato, as quais se chamavam, carinhosamente, de irmãzinhas. Dela correndo por entre as freiras que tomavam conta do lugar, ouvindo algumas delas chamarem sua atenção ou insistindo para que ela comesse toda a sopa e o mingau. Ao lado dela e das demais, fazendo as orações do dia.
Eram lembranças fragmentadas, como peças de um quebra-cabeça que, quando separadas, parecem não ter ligação alguma, mas, quando juntas, formam uma bela figura.
Voltou, então, à mente de Teodora, a figura de Lira, a garotinha que veio a se tornar sua irmãzinha mais querida do orfanato. As duas eram inseparáveis. Andavam e brincavam de casinha sempre juntas, como se uma fosse a sombra da outra. No refeitório, também se sentavam lado a lado. E o que uma comia a outra também comia. Ambas se adoravam, amavam-se, incondicionalmente. Nos dias de tempestade, chegavam a dormir na mesma cama, agarrada uma à outra.
– Lira... amada Lira – murmurou Teodora, enquanto seus olhos derramavam as lágrimas que só a saudade sabe derramar.
Lira possuía olhos verdes, grandes e profundos, e um sorriso angelical. Estava sempre disposta a ouvi-la. Achava interessante tudo o ela tinha a lhe contar. Correr com ela pelo imenso jardim que cercava as dependências do orfanato, um jardim repleto de roseiras e pés de bico-de-papagaio, dama-da-noite, arruda, fícus... Por onde as borboletas brincavam, os beija-flores saciavam o seu desejo de beijar e os passarinhos se reuniam para fazer uma grande folia, verdadeira balbúrdia em meio a sua ardida sinfonia.
Um jardim bem cuidado por seu Otacílio, um doce de homem, sempre sorridente e paciente para com as meninas.
A vida no orfanato ao lado de Lira era o que se poderia chamar de vida no Paraíso, percebeu Teodora muito tempo depois. Uma vida que poucas crianças têm a oportunidade de conhecer.
O afeto que Teodora nutria pela menina e Lira por ela era admirável aos olhos de todos, exceto aos de Irmã Jandira, mulher de porte austero, barriguda, que dispensava boa parte do seu dia para recriminar as duas amigas inseparáveis.
– Vocês precisam se desgrudar! – dizia. – Até parece que foram coladas uma à outra. Vocês têm de aprender a brincar com as outras meninas também, ouviram?
E, impondo mais força à voz, a Irmã repetia a pergunta:
– Ouviram?!
E as duas meninas respondiam humildemente:
– Sim, senhora.
No entanto, por mais que Irmã Jandira forçasse Teodora e Lira a brincarem com as outras meninas, mais elas se distanciavam delas, especialmente de Ivone e Conceição.
Ivone era uma garotinha de pele morena, quase jambo, tinha cabelos escuros em caracóis e a voz estridente, quase um soprano.
Conceição era pele e osso, parecia completamente desnutrida, mas era forte como um touro. Tinha uma energia que parecia não ter fim. Era o que muitos apelidam de moleca. Tinha a pele negra, cabelos e olhos vivos e bonitos.
Tal como Teodora e Lira, Conceição e Ivone andavam sempre juntas, porém brincavam com todas as meninas de sua idade que havia no orfanato, sem excluir nenhuma, diferente de Teodora e Lira.
Ninguém sabe precisar ao certo quando foi que Conceição e Ivone descobriram que havia algo mais divertido do que as brincadeiras para entreter seu tempo. Elas descobriram que importunar Lira e Teodora, atazanar seria a palavra mais adequada para descrever a atitude de ambas em relação às duas meninas, era a coisa mais divertida do mundo.
As duas molecas atazanavam as duas meninas, pregando-lhes os piores sustos. Saltavam de trás das portas, arbustos ou pilares que havia pelo orfanato e gritavam: “bu!” Em seguida, gargalhavam de forma debochada e histérica da cara das duas.
Faziam-lhes as mais feiosas caretas, desdenhavam de suas brincadeiras, davam nós em seus pijamas. Punham cola na cadeira em que elas estavam prestes a se sentar. Além disso, beliscavam-nas e puxavam-lhes o cabelo. Elas eram literalmente terríveis para com as duas.
Logicamente, com isso, Teodora e Lira passaram a odiar Ivone e Conceição e, quanto mais demonstravam seu ódio por elas, mais e mais Conceição e Ivone se viam atiçadas a atormentar as duas.
Teodora e Lira também passaram a odiar Irmã Jandira por ela estar sempre implicando com as duas, querendo separá-las.
Ao contrário de Irmã Jandira, que vivia ditando ordens, procurando encontrar falhas onde não havia, nos trabalhos e serviços prestados por colegas, funcionários e órfãs, havia Irmã Wanda, a qual Teodora amava imensamente. Era uma Irmã muito doce e gentil para com todas as meninas, mas Teodora sabia, assim como as demais Irmãs, que Wanda tinha um carinho especial, uma paciência e uma atenção redobrada para com ela. Até o tom que Irmã Wanda usava para falar com a pequena Teodora era mais ponderado e o beijo de bom-dia e boa-noite, mais demorado.
A lembrança da Irmã querida trouxe novas lágrimas aos olhos de Teodora. Um sorriso triste e, ao mesmo tempo, feliz, alteou o canto dos seus lábios. Saudade e alegria dançavam juntas dentro dela agora.
Teodora lembrou a seguir da época em que Irmã Wanda reunia todas as meninas do orfanato para montar a árvore de Natal. Cada uma tinha o direito de pendurar um enfeite e, quando o fizesse, devia pedir paz e saúde para todos, aconselhava a Irmã.
Em seguida, organizava-se o presépio, composto de diversas peças em gesso, lindamente pintadas à mão, algo raro de se ver nos dias de hoje. Era divertido espalhar a areia por sobre o caixote de madeira, feito por seu Otacílio, e depois plantar o arroz em casca que, regado todo dia, florescia às vésperas do Natal, deixando o presépio todinho verde, como se fosse um campo lindo de trigo em miniatura. Era um momento de grande festa e alegria.
Ah, o Natal era, sem dúvida alguma, a época mais aguardada por todas as meninas que residiam no orfanato, não pelos presentes, já que não os havia, mas pelas atividades que a festividade trazia a todas. O máximo que recebiam como presente de Natal era um punhado de balas, dado a cada uma por Irmã Dulce, que todo ano se vestia de Papai-Noel, usando uma barba longa de algodão e um roupão vermelho de cetim, reluzente. Para a meninada não havia presente melhor do que aquele, além da festança com comes e bebes ao longo do dia.
Era Irmã Wanda também quem ensaiava o coral de Natal, apresentado às vésperas do dia 25 de dezembro, para os diretores do orfanato e todos aqueles que faziam doações mensais para sustentar o lugar. A maioria dos convidados levava seus familiares para assistir ao evento, deixando o grande salão onde ocorria a apresentação tomado de pessoas.
Wanda considerava Lira e Teodora as vozes mais bonitas e afinadas do coral e pedia as duas, muitas vezes, para cantarem para ela em particular. A doce Irmã parecia se deliciar e se desligar do mundo diante da cantoria das duas pequeninas, deixando Teodora e Lira imensamente felizes por poderem propiciar a adorada Irmã tamanha alegria.
Muitas irmãs se deliciavam também com a cantoria das duas, exceto Irmã Jandira. A voz da dupla a irritava profundamente. Tão irritada ficava que chegava a pedir, aos berros, para que as duas fechassem a matraca. Era-lhe preferível ouvir um leiloeiro gritando numa quermesse “Quem dá mais? Quem dá mais?! Eu ouvi trinta, eu ouvi quarenta? Quem dá mais?!” a ouvir as duas soltando a voz.
É, nem tudo eram flores na vida do orfanato. Como em todo lugar, há sempre alguém procurando perturbar a harmonia e a felicidade alheia.
Nem na época do Natal, Ivone e Conceição deixavam Teodora e Lira em paz. Continuavam importunando as duas meninas sem dó nem piedade. Caçoavam da cantoria das duas, fazendo-lhes fusquinhas, beliscando-lhes os braços, puxando-lhes as tranças dos cabelos, embrenhando-se embaixo da mesa em que elas se sentavam no refeitório para amarrar, sem que notassem, os cadarços de seus sapatinhos um ao outro, para que, quando levantassem, tropeçassem e fossem ao chão. Era uma afronta sem fim as duas pequenas e a maior diversão para Ivone e Conceição.
Com isso, é claro, o ódio aumentou no coração de Teodora e Lira. Especialmente no coração de Teodora, a ponto de ela desejar a morte das duas garotas. Teodora e Lira passaram a rezar, literalmente, todo dia, em determinada hora, para que as duas desaforadas, como ela as chamava, morressem.
– Querida Nossa Senhora, por favor, faça com que Ivone e Conceição morram e o mais breve possível. Só assim eu e Lira ficaremos em paz. Por favor. Amém.
Um dia, Irmã Wanda ouviu as meninas rezando pela morte das duas inimigas e tratou imediatamente de repreender seu gesto.
– Prestem bem atenção no que vou lhes dizer. Muita atenção! – disse a Irmã, num tom austero, completamente fora do habitual.
As duas meninas olharam para a Irmã, assustada. Jamais ela havia lhes falado naquele tom, muito menos tivera aquela expressão tão grave no rosto. Ambas fizeram grande esforço para não chorar.
– Vocês não devem desejar mal ao próximo, jamais! – continuou Irmã Wanda. – Muito menos desejar que uma pessoa morra. Vocês gostariam que alguém lhes desejasse o mesmo? Gostariam?!
Teodora engoliu em seco mais uma vez antes de desabafar:
– Mas Ivone e Conceição são ruins para Lira e para mim. Estão sempre fazendo fusquinha para nós! Mostram a língua, fazem caretas, puxam nossos cabelos, pregam-nos sustos. Chamam-nos de apelidos de que não gostamos.
– Ainda assim não é motivo para vocês desejarem a morte delas.
– Não?!
– Não.
Wanda respirou fundo, com dificuldades, por causa da bronquite que vez ou outra a atacava, principalmente quando ficava nervosa. Completou:
– Enquanto vocês duas continuarem se aborrecendo com as pirraças daquelas duas, mais e mais elas vão chateá-las. No entanto, se vocês duas não derem mais trela para o que lhes fazem, elas logo se cansarão de importuná-las. Compreenderam?
As duas meninas se entreolharam sem saber ao certo o que responder. Irmã Wanda, arquejando de falta de ar, acrescentou seriamente:
– Vocês podem e devem tentar ser amigas.
Ser amiga de Ivone e Conceição seria a morte para ela, pensou Teodora. Seria o mesmo que ser forçada a engolir um pedaço de berinjela refogada, algo que só de ver lhe embrulhava o estômago.
Para Lira, seria tal como ser forçada a engolir uma colherada de abacate amassado, ou um ovo estrelado, que também lhe causavam ânsia só de olhar.
– Vou conversar também com Conceição e Ivone para que elas tomem modos – acrescentou Wanda, seriamente.
– Eu não quero ser amiga delas! – explodiu Teodora, rompendo-se em lágrimas. – Elas são feias, desengonçadas. Conceição é preta e beiçuda. Eu não gosto de menina beiçuda!
– Aprenda a gostar! – revidou Irmã Wanda, erguendo a voz, surpresa com a reação da menina.

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